Raízes
Nasci na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Dois meses depois fui adoptada pela minha Mãe, a única que reconheço nesse papel. Sempre soube todos estes factos, desde que me lembro, e lidei normalmente com eles. Quando me fazem perguntas sobre este assunto são sempre: "e porque te deram eles? e não te sentiste revoltada?". Eu não. Tive uma vida que não teria de outra forma e quanto à revolta, como sempre estive a par do que aconteceu e cheguei a conhecê-los, não senti nada disso. Via-os, sabia quem eram, mas eram pessoas distantes, que pouco me diziam.
Sendo filha única e tendo a minha Mãe possibilidades financeiras, a ideia dela foi sempre dar-me o que julgava melhor para mim, e em termos de educação achou que eu estaria melhor em colégios particulares. Andei num desde a pré-primária até ao ciclo e noutro do ciclo até ao fim do secundário. Sem me dar absolutamente tudo o que eu queria, porque isso não é sinónimo de gostar de mim, não me posso queixar de não ter tido aquelas coisas que os miúdos gostam, de não ter conhecido vários lugares no país e fora, de não ter tido uma vida confortável, resumindo. E sempre vivi rodeada de pessoas que viviam da mesma forma.
O que falta referir para poder chegar onde quero, daqui a umas linhas, é que a minha Mãe é portuguesa, natural de Tomar. Os meus pais biológicos são cabo-verdianos; ela natural da ilha de Santiago e ele de S. Vicente. Fui criada como se a cor da minha pele fosse outra, pela vida que tinha, pelas pessoas por quem estava rodeada e também pelo facto da minha Mãe só conhecer essa realidade. Ou seja, eu não sabia o que eram mornas, o que era o crioulo, quem era a Cesária Évora... e não era por a minha Mãe o esconder ou algo do género, ela própria não saberia dar-me isso a conhecer porque também não fazia parte do mundo em que foi criada e em que vivia.
Lembro-me de nos tempos de escola sentir que isso me diferenciava e o que eu queria era ser tal e qual as pessoas que conhecia, queria ser igual a elas. Na minha cabeça de criança eu era branca. Fui criada por Mãe branca, tinha amigos e professores brancos, fui criada nessa cultura. Não tinha qualquer ponto de referência que me ligasse às minhas origens. Ficava mesmo ofendida quando se referiam a mim como mulata ou mestiça e irritavam-me os olhares curiosos por ter esta cor e a minha Mãe ser branquinha como cal. Ou quando ou pretos ou brancos me olhavam de lado por eu não ser nem uma coisa nem outra; simplesmente estar ali, no meio.
Com os anos fui entrando na minha pele e hoje em dia é coisa que encaro com toda a naturalidade. Continuo na mesma realidade em que sempre vivi, continuo sem ter contacto com aquela parte de mim que vem desde antes de nascer, com a minha própria origem.
Hoje estava a ler um artigo da revista "Única" sobre uma cantora cabo-verdiana, chamada Lura, e dei por mim a pensar nisto tudo. Na vontade cada vez maior que tenho de ir a Cabo Verde, conhecer a terra dos meus "pais", conhecer as pessoas, os lugares, a música... Acho que não me será indiferente porque é uma parte de mim que desconheço quase completamente. Sinto que é uma daquelas coisas que tenho de fazer antes de morrer porque há-de ter algum sentido que na altura vou compreender.
08.10.2006
Ontem lembrei-me deste texto que escrevi há mais de dez anos. Pensar na quantidade de coisas que aconteceram entretanto...
Ainda não fui a Cabo Verde e deixou de ser possível fazer essa viagem com a minha Mãe, mas é um lugar que ainda habita o meu imaginário e que quero conhecer.